Queridos colegas e novos terapeutas junguianos,
É com grande prazer e responsabilidade que me dirijo a vocês, que estão iniciando sua jornada no campo da psicoterapia Junguiana. Há um conceito essencial que gostaria de compartilhar e aprofundar, o qual é crucial tanto para a prática clínica quanto para a compreensão dos processos psíquicos: o tempo do inconsciente e sua relação com o tempo mítico e sagrado.
O tempo do inconsciente não é linear, como o tempo que experimentamos em nossa vida cotidiana, o tempo do relógio, o khronos. Ele se aproxima muito mais do conceito de kairós, o tempo qualitativo, o tempo oportuno em que as transformações significativas ocorrem. Santo Agostinho, em suas Confissões, lembra-nos de que “os tempos, geralmente contados como três, na verdade, são considerados apenas um: o tempo presente. O tempo passado é aquele que já se foi, portanto, já não é; o tempo futuro é o que será, por conseguinte, não se pode garantir que exista nem mesmo como possibilidade” (Agostinho, 1997, p. 323). Aqui, ele nos apresenta a essência do tempo presente como a única realidade tangível, algo que encontramos também na prática psicoterapêutica, especialmente ao lidarmos com o inconsciente.
Quando entramos em contato com traumas ou memórias profundamente enraizadas no inconsciente, estamos acessando um tempo que não segue a lógica do khronos. O inconsciente, como bem sabemos, não diferencia passado, presente e futuro. Como afirmavam Eliade e Jung, o tempo sagrado é atemporal e cíclico. “O tempo sagrado é pela sua natureza própria reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um tempo mítico primordial tornado presente” (Eliade, 1992, p. 81). No trabalho terapêutico, ao acessarmos uma memória traumática, um arquétipo ou um complexo, estamos reentrando nesse tempo mítico, um tempo em que o passado se faz presente e se relaciona diretamente com o futuro.
A terapia junguiana é, em muitos aspectos, um rito. Ela permite ao paciente revisitar suas experiências, traumas e vivências em um ambiente seguro, um espaço ritualístico onde o kairós pode emergir. Durante essas revisitações, o passado é transformado. Como Durkheim afirma: “os estados de consciência que já experimentamos podem se reproduzir em nós, na mesma ordem em que aconteceram primitivamente: e assim, porções do nosso passado voltam a ser presente, mesmo distinguindo-se espontaneamente do presente” (Durkheim, 1989, p. 39).
Esse acesso ao tempo do inconsciente, ao kairós, é fundamental na ressignificação de traumas e na integração de experiências passadas. O trauma, quando acessado no tempo do inconsciente, deixa de ser apenas um evento doloroso do passado e passa a ser uma oportunidade de cura no presente. Em termos junguianos, o inconsciente nos oferece a possibilidade de acessar o material reprimido e transformá-lo, tornando o passado uma força criativa, ao invés de uma prisão.
Mircea Eliade (1992) nos lembra de que o homem secularizado perde essa conexão com o tempo sagrado, com o tempo mítico. Ele vive apenas no khronos, “o tempo monótono e pesado do trabalho”, sem o mistério do rito, sem o espaço para que o kairós se manifeste (p. 61). Contudo, na terapia junguiana, recriamos esse espaço. Cada sessão é um momento em que o paciente pode experimentar o sagrado, o simbólico, onde o passado e o futuro se entrelaçam e são ressignificados.
David Stern, ao estudar o tempo subjetivo, descreve o kairós como o momento em que algo significativo acontece, um instante que requer compreensão e ação simultânea: “Kairós é uma unidade de tempo tanto subjetiva quanto psicológica. Claramente, o momento presente precisa ter aspectos de kairós porque gera a necessidade de entender o que aconteceu no passado, o que está acontecendo agora e como agir em relação a isso” (Stern, 2007, p. 15). Assim, o tempo do inconsciente, tal como o kairós, exige que sejamos capazes de compreender e agir dentro do momento presente, pois é nesse “agora” que as transformações profundas ocorrem.
A memória também é um campo em que o kairós e o inconsciente atuam de maneira singular. Como Stern pontua: “Em suma, a intrincada interdependência entre o significado explícito e a experiência afetiva implícita fica clara no nível local do momento presente” (Stern, 2007, p. 222). Ou seja, no momento presente da terapia, fragmentos do passado são organizados de forma a criar uma nova experiência de memória, mais completa e curativa.
Como terapeutas junguianos, nossa tarefa é criar o espaço e o tempo para que o kairós possa emergir, para que o paciente possa, por meio da análise e do rito terapêutico, ressignificar suas vivências. Ao integrarmos passado, presente e futuro no momento do agora, ajudamos nossos pacientes a acessarem o tempo do inconsciente e, por meio dele, encontrarem novas formas de ser no mundo.
O tempo do inconsciente é, portanto, atemporal, como o tempo do mito e do rito. Ele é o espaço onde o trauma pode ser curado, onde o passado se transforma e onde o futuro se molda. Como terapeutas, somos guardiões desse tempo sagrado, facilitadores do processo em que o paciente pode adentrar e sair desse tempo, quantas vezes forem necessárias, até que suas feridas sejam curadas e sua totalidade psíquica restaurada. (Trecho do Livro A Jornada da Alma: A Prática da Psicoterapia Junguiana)